Para além das cotas*
A discussão de cotas e ações afirmativas durante muito tempo tomou conta das rodas de diálogos em Universidades, Colégios, rodas de magistrados e políticos de todas as frentes – constitucional ou inconstitucional? – Era a grande dúvida deles e até em mesas de bares e onde mais houvessem pessoas interessadas no debate ou simplesmente na polêmica.
Considerou-se pela maioria esmagadora do Movimento Negro em suas mais variadas entidades – Coordenação Nacional de Entidades Negras (CONEN); Movimento Negro Unificado (MNU); União de Negros e Negras pela Igualdade Racial (UNEGRO); Coletivo Entidades Negras (CEN) dentre outras, que a Política de Cotas era um grande avanço. O Movimento Negro Socialista (financiado pelo senador Demostenes Torres – DEM / GO) publicamente se colocou desde o início quando a discussão sobre Cotas era restrita ao caso da UnB como contrário. Lançaram manifesto assinado dentre outros, por Léa Garcia, atriz e colaboradora do Teatro Experimental do Negro, fundado pelo grande ativista negro brasileiro, Abdias do Nascimento.
O Governo Federal na então gestão do Senhor Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, bancou a discussão, fez defesa e considerou uma de suas políticas centrais através da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR com status de Ministério. Não foram poucas as vezes que os/as mais variados/as Ministros/as que ocuparam a SEPPIR nos oito anos de Governo Lula revezaram-se em palestras, audiências públicas, atos em praças, ruas, universidades e escolas para defender a Política de Cotas, de Matilde Ribeiro ao interino João Nogueira da transição Governo Lula – Dilma. As Cotas raciais (negros/as e indios/as) são sim representação do grito histórico dos seguidores de Zumbi e Maria Felipa por REPARAÇÃO. Essas Cotas ainda seriam discutidas e passariam novamente por idas e vindas no Supremo e na Câmara dos Deputados e Senado Federal inúmeras vezes. A UNEB na Bahia foi a primeira a aderir a política e formar turmas com indígenas em seus mais variados cursos e a alardear isso Brasil a fora tal qual inúmeras outras Federais e Estaduais do país.
O Estatuto da Igualdade Racial – remendado e de longe, não agradável ao Movimento Negro como um todo, principalmente nos capítulos Terra (reconhecimento das terras Quilombolas) e Educação, reafirmou a Política de Cotas e Ações Afirmativas. Aquele ou aquela que declaresse ser negro/a teria direito a disputar a vaga. Erros aconteceram. Em Brasília, irmãos gêmeos idênticos foram o caso mais excandaloso: um passou por cotas sendo considerado negro e outro reprovado, não era negro. Como? São gêmeos e idênticos! Onde estava o erro? Na Política de Cotas? Na UnB? No governo? Na SEPPIR? No Lula ou na Matilde Ribeiro? O erro estaria no “colorimetro” utilizado para medir a cor dos brasileiros candidatos a uma vaga de Ensino Superior? Talvez, se usaram esse “colorimetro” sim. Outros ataques vieram.
O Colegiado de Reitores avaliaram então a alternativa de Cotas Sociais, o MEC comprou a briga e liberou Cotas Raciais e Cotas Sociais. No que tange a Políticas de Cotas Sociais aqueles e aquelas que viessem de escola pública, fossem de baixa renda estes sim, teriam o direito. Mas e o grito histórico de Reparação racial? O Movimento Negro foi para cima. Não negava a Cota Social mais queria, exigia a Cota Racial. Algumas Universidades do país adotaram então Cotas Raciais e Sociais e outras só Sociais e outras ainda, só Raciais. O Estatuto fora aprovado e promulgado, mas não trouxe em seu bojo na parte educação uma linha que determinasse raça apenas e não social. Bom ou ruim? Talvez todas devessem usar as duas regras – raça e social – e não apenas aquelas que assim o decidirem fazer. Imposição? Não, unidade. Unidade na luta essa é a ideia central. Mas e depois das Cotas e da entrada dos estudantes denominados negros/as e cotistas? O que ocorreu?
Bom, muitos entraram e não conseguiram permanecer. A falta de condições financeiras (social + raça = estudante cotista), falta de dinheiro para os livros e as xerox e o transporte e a alimentação e aquilo e outro e “Maria’ e “João”. Muitos sairam. Apareceram em jornais impressos e televisionados como “primeiros/as cotistas” e depois nem essa imprensa voltou para mostrar o outro lado da moeda. Outros porém, permanecem. Vitória isso! Mais alguns sairam e por esses motivos elencados e tantos outros.
Faltou ao Estatuto Racial, a SEPPIR, ao Lula, ao Movimento Negro e principalmente aos/as Cotistas, o acréscimo simples de POLÍTICAS DE COTAS, AÇÕES AFIRMATIVAS E ASSISTÊNCIA ESTUDANTIL. Sem a Assistência Estudantil (para todos os estudantes do Brasil, independente de cor, sexo, ideologia, região, credo religioso etc) esses cotistas não permanecem. Para além das Cotas, era e é ainda preciso Assistência Estudantil. É bom entrar. Mais é preciso permanecer. Se manter e sair com o diploma na mão. O povo negro não quer só entrar, mais entrar, ficar, sair diplomado. Com seus títulos e a certeza de que Políticas de governo para a Promoção da Igualdade Racial precisam ser completas e não pela metade. Êya povo negro! Valeu Zumbi! Valeu Dandara! Valeu Mandela! Valeu Abdias do Nascimento!
*Law Araújo – Ex- Coordenador Geral ExNEL Nordeste gestão 2010/2011; Militante do Movimento Negro, Coordenador Geral do Coletivo Pensar Negro – Entidade filiada à CONEN Bahia/Brasil.
_________________________________________________________________________Conferência “A Emoção na Arte Moderna” – Graça Aranha
Graça Aranha, escritor e diplomata brasileiro, imortal da Academia Brasileira de Letras, ao participar da Semana de Arte Moderna – a Semana de 22, inaugurando-a com sua Conferência “A Emoção na Arte Moderna”, proferida logo na abertura da Semana em 13 de fevereiro de 1922, deu o que se pode chamar de “prestígio” ao evento. Graça Aranha apresentou que a Exposição era “curiosa, sugestiva e uma aglomeração de “horrores””. Indaga em sua explanação o que é belo? Qual o conceito de beleza e chama de preconceito a idéia de que a arte tem que ser bela, que essa conceituação nada mais faz do que aterrorizar a arte com a defesa de beleza, beleza essa que não se pode conceituar, definir, afirmar, apresentar.
Graça Aranha evoca para que tal qual o título de sua conferência, a arte tenha emoção. Tenha cor e que comova. Que envolva, pois afirma ele, “a arte é eterna e o homem é por excelência o animal artista”. Sendo assim, o homem tem vida, cheiro, cor, vontades que pulsam. Assim deve ser a arte. Emocionante. Pulsante. Defende ainda que a arte seja tanto mais viva funda e transmitirá sempre mais quanto mais artista for o criador, o intérprete dessa arte e o expectador, sim, porque esse expectador é peça fundamental na apresentação (formulação, representação, exposição) da arte em si.
Retomando a idéia da importância da pintura, destaca Aranha, que “a pintura nos exaltará, não pela anedota...mas...pelos sentimentos vagos e inefáveis que nos vêm da forma e da cor”. E afirma ainda, que “é na essência da arte que está a Arte”. O que o escritor quer pontuar, é que as copias são inadequadas, a ideia de copiar o movimento A ou B e manter-se preso as influências alheias não permitem que brote a essência pura da Arte.
Graça Aranha defende ainda que a arte – música, literatura, pintura – não muda de si e sim, o pensamento, a cabeça dos indivíduos. Aponta em seu texto que “o intelectualismo é substituído pelo objetivismo direto, que levado ao excesso, transbordará do cubismo no dadaísmo”. Declara então guerra à Academia e ao academicismo. Afirma que ignora a função social da Academia e que a mesma mata a essência da arte. A pureza da mesma. O artista mais esplendoroso morre em seu nascedouro uma vez que a Academia limita e impõe regras de “uma boa arte” limitando assim a criação inovadora e pessoal. O Escritor defende o individualismo e a arte livre de regras. Sobra a Academia diz ele “Ignoro como justificar a função social da Academia. O que se pode afirmar para condená-la é que ela suscita o estilo acadêmico, constrange a livre inspiração, refreia o jovem e árdego talento que deixa de ser independente para se vazar no molde da Academia...Nenhum benefício trará a língua esse espírito acadêmico, que mata ao nascer a originalidade profunda e tumultuária da nossa floresta de vocábulos, frases e idéias...”. Conclui afirmando que o “academismo” não é dominante apenas na literatura, mas, o mesmo se estende às artes plásticas e à música, transformando em “medíocre e triste” tudo o que “a vida oferece de enorme, esplêndido e imortal”. Porém, o autor considera que o regionalismo não é “um material literário” quando se trata de uma literatura que aspira ser universal. Antes, porém, reclama contra a arte atual, dizendo que a mesma dá ao que temos por “modernismo” uma afeição artificial.
A conclusão da conferência é que a arte do Brasil, a literatura, a música, a pintura brasileiras nascem a partir desse momento, dessa Semana de 1922 que para muitos era “o circulo de horrores” e loucuras de um grupo de jovens. Para Graça Aranha, a Semana de Arte Moderna cumpre o papel de independência artística do Brasil uma vez que ocorre no ano do Centenário da Independência da Nação. Diz o autor “O que hoje fixamos não é a renascença de uma arte que não existe. É o próprio comovente nascimento da arte no Brasil, e, como não temos felizmente a pérfida sombra do passado para matar a germinação, tudo promete uma admirável “florada” artística”. Aranha nega que tenhamos tido algum passado artístico, literário. O que ele considera bom, a ausência de um passado para que assim sendo, livre de amarras se possam escrever e inaugurar de fato a arte do país, com o jeito e cara do mesmo e das pessoas que o farão do presente momento para frente. “A vida será, enfim, vivida na sua profunda realidade estética” e encerra desejando que a arte seja fiel a si mesma e possa nos transportar pelos sentimentos: tato, cores, sabores, sons, formas ao que ele denomina “gloriosa fusão no Universo”.
(ARANHA, Graça, Espírito Moderno, São Paulo, Monteiro Lobato, 1925 – Texto da Conferência de Abertura da Semana de Arte Moderna em 1922 – São Paulo, SP, Brasil. Título da Conferência “A Emoção na Arte Moderna”).
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O Pagode Baiano como elemento Formador de Identidade na cidade do Salvador*
APRESENTAÇÃO
O presente Ensaio tem como objetivo discutir e trazer reflexões sobre “O Pagode Baiano como Elemento Formador de Identidade na cidade do Salvador”. A busca pela IDENTIDADE vem de longas datas na humanidade e em nosso país. Vários pensadores, professores, escritores e filósofos já abordaram o tema da “Formação Identitária” do povo brasileiro, a exemplo de Marilena Chauí, Ziláh Brand e Gilberto Freyre – este último como visto em sala de aula, durante as aulas de Cultura Brasileira -, a perseguição por uma Identidade formada como alvo, é antiga e é o mote que me faz apresentar esse Ensaio. A Semana de Arte Moderna em 1922 trazia como elemento principal a negação de um passado que os mais radicais afirmavam que não existia, e consequentemente a busca da Identidade do país na Literatura e através da Literatura. A geração de 1930/1940 traz à Literatura o Regionalismo – Jorge Amado, Rachel de Queiróz, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo – apontam a necessidade de uma Literatura que mesmo sendo a de Brasil, já discutida e abordada na Semana de 1922 e geração de 1920, tenha também a Identidade Regional – Nordeste e Sul – evidenciada, demarcada.
O pagode em Salvador trouxe ao longo de sua existência uma afirmação indentitária. O Axé Music não conseguiu (mesmo com a força que tinha/tem) criar uma categoria identificada com a idéia de “axemusicista”, digamos assim. Mas os pagodeiros e pagodeiras são afirmados como tal e é talvez essa a maior contribuição que o pagode de Salvador vem dar aqueles e aquelas que se identificam e auto declaram pagodeiros. Muitos sem saber como se definir, sem se encontrar em absolutamente nenhuma categoria ou subcategoria classificatória encontraram no pagode a sua chance de auto afirmação e construção identitária.
PALVRAS-CHAVES: Pagode, Identidade, Afirmação, Construção Identitária.
O Pagode Baiano como elemento Formador de Identidade na cidade do Salvador
Muitos temas já foram abordados em Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) e resenhas, artigos e ensaios. O pagode ainda não é ambientado comumente na Academia. Porém, diante do que aponto como “Elemento Formador de Identidade” não podia me furtar a apresentar esse tema. E como o vejo e entendo? Isso é o que discorrerei a partir de agora.
A nossa nação e sociedade é totalmente dividida e excludente. As camadas mais altas trabalham sempre por excluir e diminuir as camadas menos favorecidas e por conseguinte, “guetizando-as” e marginalizando-as, impondo assim, uma separação e isolamento de grupos/tribos.
Ao longo da vida as pessoas se perguntam “quem são?” e são perguntadas quanto a isso. Muitas não fazem à menor ideia de quem sejam por falta dessa identidade definida e assumida. E assumir uma identidade, achar algo de que gostem realmente e em que se vejam/sintam completados é muito difícil. Gerações passadas descobriram em estilos musicais uma forma de formar sua identidade. A música popular sempre ao longo da história contribui e muito como formação de nossa identidade. Músicas eram encomendadas por governantes a fim de vender uma ideia de nação, de cara e jeito brasileiros de ser e se mostrar. No que tange aos grupos buscando se apresentarem e se formarem, ou seja, formarem sua identidade, a música é e foi elemento importante, foi assim com os roqueiros, usando roupas pretas, calças jeans e jaquetas – mesmo no calor brasileiro e da cidade do Salvador – e assim, assumiram essa postura, de roqueiro, outros de punk, outros sambistas (ao longo de décadas) e sambistas com estilo próprio de vestir, a figura do malandro, por exemplo – terno, camisa social aberta, sapato engraxado e roupa boa – figuram nosso imaginário ainda hoje.
Os pagodeiros aparecem mais ou menos inicio e meio dos anos 1990 e no inicio era um estilo musical apenas, uma vertente do axé onde figuram bandas e grupos como Gerasamba (1992 e que lança em 1995 o disco É o Tchan, que depois com a separação do grupo vem a ser uma nova banda), É o Tchan, Gang do Samba, Terra Samba, Harmonia do Samba, Guig Gheto, Psirico e as mais recentes Fantasmão, Black Style, Leva Nóiz, O Troco, A Bronka, Edcity, Raghatoni, Parangolé, É Xeque, No Stylo, Saiddy Bamba (grupo da vereadora de Salvador Léo Kret do Brasil) etc.
Ao longo desse período, grupos foram extintos, fusões aconteceram, bandas acabaram e voltaram. O estilo pagode mudou. As músicas não são mais as mesmas e a ideia de estilo musical, próximo ao Axé Music passou a ser de um segmento próprio. Com suas características e perfil identitário particulares. O pagode vem para uma geração de jovens, homens e mulheres como “porto seguro” identitariamente falando. No que tange aquela pergunta a qual me referi no inicio do texto, quem são esses seres da periferia de Salvador nos anos 1990/2000? Quem são esses moradores da Cidade Baixa: Uruguai, Roma, Ribeira, Jardim Cruzeiro, Caminho de Areia etc. e do Subúrbio: Paripe, Lobato, Periperi, Alto de Coutos, Alto do Cabrito, Itacaranha, Fazenda Coutos etc. e da periferia e do chamado miolo de Salvador: Fazenda Grande, Retiro, Pirajá, Dom Avelar, Mata Escura, Nordeste de Amaralina, Cajazeiras, Alto do Peru, Calabar, Baixa dos Sapateiros, Curuzu, Largo do Tanque, São Caetano, Pero Vaz, Liberdade etc.? Essas pessoas não se viam em absolutamente movimento/segmento algum. Não estavam enquadrado no universo do Axé Music que cada ano que passa canta menos para eles, permitem menos ainda sua participação e inserção.
Com a explosão do pagode baiano na cidade do Salvador, que vale apena pontuar, que em nada tem de herança ou ligação com o pagode de São Paulo da década de 1990 com os grupos Katinguelê, Karametade, Negritude Júnior, Soweto, Só no Sapatinho (grupo liderado pelo filho do ex-jogador Zico) e ainda o Só Pra Contrariar (Minas Gerais), que apresentavam aquele estilo “romatico-açucarado”.
Diante das pessoas da periferia o fato ou elemento “ser pagodeiro” constitui sim uma formação de identidade. Adquire-se um estilo próprio, pessoal, um jeito de vestir e até falar, criando e desenvolvendo até mesmo um “pagodês”, dialeto próprio. A caracterização compõe esse elemento identitário tal qual aquele estilo do sambista – roupa social, sapato social, camisa aberta, corrente no pescoço, chapéu etc. O pagodeiro veste bermudas largas, camisetas apertadas e em sua maioria, sem manga, correntes e “batidões” no pescoço, o cabelo acompanha esse figurino – corte moicano, gel no cabelo, cabelos cortados com algum tipo de risco/marca seguindo uma orientação de alguém da banda, nem sempre o vocalista, mas também o vocalista. O pagode aparece mostrando a população de baixa renda e maioria dessa cidade, que existe ambiente de igualdade e que os mesmos podem sonhar um sonho mais próximo. O sonho de ser um grande jogador de futebol tal qual Ronaldinho Gaúcho, Ronaldo Nazário, Robinho, é um tanto quanto distante. Ser pagodeiro é mais próximo. Os pagodeiros – fãs vêem nos pagodeiros – artistas, pessoas iguais a eles. Percebem-se em cima do palco, visualizam uma condição de iguais. Eles (ouvintes) podem ser o pagodeiro do próximo momento, o novo Edcity, Léo Santana, Robsão ou Márcio Victor, uma vez que no mundo do pagode, com o surgimento e desaparecimento de bandas, o próximo momento pode realmente ser bem mais próximo e real que muitos julguem.
Por mais que bandas entrem e saiam de cena, o estilo pagode permanecesse. A identidade pagodeira fica e não se deixa apagar. Porque é o elemento de sobrevivência dessa geração e dos povos dessas comunidades dentro da cidade do Salvador.
A cidade do Salvador, diga-se de passagem, já se acostumou e digamos “se enquadrou” ante o estilo e suas festas. As famosas e badaladas “Festas de Camisa Colorida”, “Salvador Fest”, “Paripe Fest”, “Cajazeiras Fest”, “Itapagipe Fest” dentre outras. Os momentos dessas festas são as verdadeiras concentrações de pagodeiros. Todos com seus estilos particulares e uma única identidade: pagodeiros. Gravações de DVD ao vivo, festas de camisas, momento de “pegação” e exploração máxima da chamada e famosa “swingueira”.
A pegação – o pagode permite e transmite um verdadeiro “ritual do acasalamento” onde a lei é “partir pro abraço e sair do zero a zero”, já que as danças são cada vez mais sensuais, envolventes e bem explicitas. Não que todos estejam dispostos única e exclusivamente a tal pegação, mas fomentasse a ideia de que ali, as chances são maiores e infinitas. A swingueira – é o que muitos críticos ou pseudos críticos do pagode debatem, dizendo, “eles não tem letra, mas tem uma batida, uma swingueira que envolve”. Essa swingueira, essa batida, essa mistura de ritmos pensados e os inimagináveis no campo da mistura – misturando ritmos do candomblé com o som arrancado de uma lata velha de óleo de cozinha, permitem chamar atenção e envolver milhares de pessoas.
Se afirmavam antes que os soteropolitanos da periferia, cidade baixa, subúrbio e miolo de Salvador não tinham identidade e não eram ninguém, eis que com o pagode passam a ter uma definição de suas identidades. São pagodeiros! Pagodeiros no jeito de vestir, falar, andar, porta-se, de cortar os cabelos. Pagodeiros de alma e espírito. Contam com essa identidade e vestem-se dessa identidade no meio de uma “Babel Soteropolitana” de intelectuais da música como Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa e os futuristas das músicas de Tom Zé, Carlinhos Brown, os sambistas de Dorival Caymmi, Ary Barroso, Edil Pacheco e Riachão. Os axé music’s de Ivete Sangalo, Banda Eva, Daniela Mercury, Margareth Menezes, Tomate, Chiclete com Banana. A música negra afro resistente e consciente de Edson Gomes, Olodum, Illê Aiyê, Malê de Balê, Muzenza. O fricote de Luiz Caldas, Sarajane dando origem a Axé Music e o Pagode Baiano inicial lá do Gera Samba até o mais atualíssimo dos pagodes de bandas e de alguns que fazem o solo. Diante dessa pluralidade musical – a quem diga que “a Bahia é uma gravadora disfarçada de Estado”, o espaço do pagode e dos pagodeiros fica evidenciado. A tribo pagodeira organizou-se e cresceu. Tomou corpo, forma, cor e som. Demarcou seu campo na periferia da cidade e invadiu outros pólos. O pagode é tocado, cantado e dançado em calouradas universitárias das mais variadas, conceituadas e caras universidades e faculdades da cidade, festas em condomínios fechados da Barra, Corredor da Vitória, Pituba e demais espaços e eventos da alta sociedade, além também de serem facilmente ouvidos nos sons dos carros em praias de Salvador e região e nos bairros nobres da cidade. A elite desce de seus play ground em busca do pagode.
Os pagodeiros cantam a realidade cotidiana de cada um. Falam da exclusão social; desemprego; situação do negro e auto afirmação da identidade negra; brigas familiares; drogas e criminalidade; das relações amorosas e fracassadas. De traições e sexo banal (pegações). Narram em suas letras histórias de festas; causos populares e apresentam sim, não irei negar: uma depreciação da mulher e seu papel. Escalam-na como subalterna, inferior. Objeto. A maioria das bandas de pagode em suas músicas assim o fazem. Alguns, trabalham pelo viés oposto, exaltando, enaltecendo a figura feminina. Um exemplo de “alto e baixo” pode ser apresentado com a banda Psirico onde um ano ganhou a música do carnaval com a interpretação de “Mulher Brasileira – ela é toda boa” e esse ano recebeu criticas com a música “Gugu-Dadá” onde as feministas entendiam que o trecho “Toma negona, toma na boca e na bochecha” era pejorativo e colocava a mulher em estado de submissão. Márcio Victor, cantor e compositor da banda, foi aplaudido por algumas dessas feministas ao lançar “Mulher Brasileira” e com “Gugu-Dadá” recebeu unanimemente de todas as feministas, os protestos e vaias. Porém, a coisa vai além, com as famosas “Bota a vocetá no pau”, “Rala a xana no asfalto”, “perereca pra frente e perereca pra traz”, o duplo sentido permeia as músicas de pagode em Salvador. Constam em sua gênese.
O que quero explorar nesse Ensaio é que diante de uma identidade nacional ainda hoje discutida, debatida, perseguida. O pagode baiano na cidade de Salvador apontam uma formação de identidade de grande parte de seus soteropolitanos, dando-lhes condições de assim sendo, afirmarem-se na sociedade como classe/grupo/categoria/tribo. Ser pagodeiro é muito mais que vestir-se como tal e ouvir as músicas em alto e bom som. Ser pagodeiro é ter estima elevada e saber pontuar-se na sociedade. Deixa de ser um número ou um ser sem identidade e passar a ser um elemento formado identitariamente falando. Ter características e pontos a serem apresentados e abordados, discutidos, debatidos.
O Fantasmão apresentou uma música onde defende o pagode e afirma o gosto popular pelo pagode, apontando os elementos cotidianos da luta contra a desigualdade social imposta em nossa sociedade.
O povo gosta é do pagode (Fantasmão)
O povo gosta é do pagode (do pagode, do pagode),
A gente gosta é do pagode (do pagode, do pagode),
A gente gosta é do pagode (do pagode do pagode),
E com o pagode ninguém pode (o pagode, o pagode).
A gente gosta é do pagode (do pagode, do pagode),
A gente gosta é do pagode (do pagode do pagode),
E com o pagode ninguém pode (o pagode, o pagode).
E aí irmão,
Se liga nessa o meu pagode tem valor,
Da alegria pra esse povo sofredor,
Pra essa Bahia que foi largada de nós,
Se liga nessa o meu pagode tem valor,
Da alegria pra esse povo sofredor,
Pra essa Bahia que foi largada de nós,
E aí mano
Se a hipocrisia ficou puta com esse som
e abre a boca pra falar que a gente é pobre,
Corte essa língua pra falar do meu pagode
Se a hipocrisia ficou puta com esse som
e abre a boca pra falar que a gente é pobre,
Corte essa língua pra falar do meu pagode
Olha por quê ?
O povo gosta é do pagode (do pagode, do pagode),
A gente gosta é do pagode (do pagode, do pagode),
A Ivete gosta é do pagode (do pagode do pagode),
E com o pagode ninguém pode (o pagode, o pagode).
O povo gosta é do pagode (do pagode, do pagode),
A gente gosta é do pagode (do pagode, do pagode),
A Ivete gosta é do pagode (do pagode do pagode),
E com o pagode ninguém pode (o pagode, o pagode).
O pagode na alma o pagode na veia
O pagode de tudo, incendeia
Incendeia, Incendeia
Incendeia, Incendeia.
O pagode de tudo, incendeia
Incendeia, Incendeia
Incendeia, Incendeia.
Aqui fica evidenciado a defesa do pagode como instrumento de valor e pertencimento da população pagodeira. Afirma o autor que o pagode tem valor e que dá alegria ao sofredor. Ou seja, ouvir pagode, reunir os amigos em torno de um isopor cheio de cervejas, curtindo a swingueira no volume mais alto é a busca de uma alegria/felicidade ante momentos de tormentos, dores, sofrimentos e desesperos cotidianos. Ao citar uma das musas do Axé Music respeitada e conceituada como Ivete Sangalo, que sempre abre espaço para o pagode e seus novos membros/representantes, cantando suas músicas e levando-os para cima de seu trio, é aqui nessa canção, mostrar que o pagode extrapola as barreiras e que mais além dos iguais da periferia, a musa (Ivete Sangalo) também gosta do pagode. Voltando ao ponto do que tratam as letras de pagode para contribuir a essa formação de identidade, algumas músicas trazem a reflexão racial e social e o combate ao crime, pregando a não entrada no mesmo, ou narrando histórias (reais) de alguns que entraram e se deram de mal. Bons exemplos constam ainda nas músicas da banda Fantasmão e do cantor Edcity:
Gaiola (Fantasmão)
“Viver em liberdade é como um pássaro livre sem gaiola...
Quem vacila na quebrada vai cair no gaiolão...
Vai cair na gaiola, seu próprio parceiro pode te entregar,
vai cair na gaiola seu mundo é esse não é o de lá,
não vá pisar na bola”.
O cantor então vocalista da banda, apresentou essa canção afim de conscientizar aqueles de que o mundo do crime não é o lugar deles. E que existem os conflitos de interesse onde até o amigo/parceiro pode denunciá-los. O gaiolão é a cadeia, a prisão, o cárcere e o afastamento e privação diante dos seus. Esse mote do cotidiano está presente nas músicas de pagodes baianos como se fosse (e acaba sendo) um mantra. A ênfase no pensamento racial é também constante. Os cantores de pagodes, as dançarinas e os percussionistas são em sua esmagadora maioria negros e negras. E o público que os ouve também o é. Por isso, é recorrente em letras a exaltação do homem negro e da mulher negra, tal qual o que fazem os blocos afros como Olodum e Illê Aiyê classificando negros e negras como deus e deusa do Ébano. Alguns exemplos de enaltecimento da raça negra pode ser observado nos seguintes trechos de músicas:
NEGRO LINDO (Léo Santana – Banda Parangolé)
“Ê Lute minha raça
Ame minha cor
Ame minha raça
Ame minha cor
Ame minha raça
Lute minha cor
Sou eu Negro Lindo...”
Outro exemplo podemos destacar no seguinte trecho:
Quebre Igual a Negona (Fantasmão)
“Alô loirinha, alô loirona...quebre igual negona,
Quebre igual negona...”
E ainda:
O Mal Contamina (Fantasmão)
“Sou preto
Negro como a noite sem estrelas
Sou negro
Mas a brancura do olhinho
Se encontra na simplicidade do meu olhar
O mal contamina a pele
O mal contamina o corpo
O mal contamina a alma
O mal contamina tudo
O mal contamina o mundo...”
Negro como a noite sem estrelas
Sou negro
Mas a brancura do olhinho
Se encontra na simplicidade do meu olhar
O mal contamina a pele
O mal contamina o corpo
O mal contamina a alma
O mal contamina tudo
O mal contamina o mundo...”
Essa insistência em conscientizar através das músicas é parte do processo de formação identitária que o pagode contribui e fomenta. Se reconhecer e perceber enquanto negro e lindo, onde a branca (loirinha/loirona) terá que “quebrar” (dançar) igual para poder ter molejo é o reconhecimento da importância e afirmação de cada um. O que cada um é e tem para apresentar. Ser pagodeiro é ter consciência racial e social aguçada. Basta haver a meditação no que se canta e dança com frequência. Por isso digo sempre, não cante o que escuta, mas escute o canta.
Outro ponto a ser destacado é o reconhecimento de mundo próprio e particular. Os grupos de pagode defendem a ideia de uma comunidade (favela), espaço de mundo próprio para os seus. Algo particular com normas, regras e muitos ideais e sonhos onde podem apresentar e constituir. A banda Psirico imortalizou na voz de Márcio Victor um hit que em épocas de chuvas foi tocada e repetida em rádios e programas sensacionalistas e não sensacionalistas de TV aberta da Bahia.
Firme e Forte (Banda Psirico – Márcio Victor)
“Na encosta da favela "tá" dificil de viver,
e além de ter o drama de não ter o que comer.
Com a força da natureza a gente não pode brigar
o que resta pra esse povo é somente ajoelhar,
e na volta do trabalho a gente pode assistir.
Em minutos fracionados a nossa casa sumir, tantos anos de batalha
junto com o barro descendo e ali quase morrer é continuar vivendo.
e além de ter o drama de não ter o que comer.
Com a força da natureza a gente não pode brigar
o que resta pra esse povo é somente ajoelhar,
e na volta do trabalho a gente pode assistir.
Em minutos fracionados a nossa casa sumir, tantos anos de batalha
junto com o barro descendo e ali quase morrer é continuar vivendo.
Êee chuá chuá, ê chuá chuá,
Temporal que leva tudo, mas minha fé não vai levar.
Êee chuá chuá, ê chuá chuá,
O meu Deus dai-me força pra outra casa levantar.”
Temporal que leva tudo, mas minha fé não vai levar.
Êee chuá chuá, ê chuá chuá,
O meu Deus dai-me força pra outra casa levantar.”
As casas da população mais pobre e por conseguinte representada nas letras de pagode, são construídas justamente nas encontas. São barracos construidos em cima de barrancos e que como diz a música a qualquer momento/minuto pode cair. E seus moradores assitirem esse “espetáculo” de horror e dor. Porém, o autor não deixa de lembrar a força (por isso o título fime e forte) e a força de vontade de recomeçar e sempre ter fé. Nunca deixando-a ser abalada. Uma forma comum de determinar esse espaço de vivência – favela, comunidade, bairro é dando-lhe o nome de GUETO. Essa forma é repetida em inúmeras músicas a exemplo da música abaixo:
Quem mora no guetto (Anderson Curió/Banda No Stylo)
“Quem mora no guetto sabe o que sente no peito
Acordar de manha ver seu filho chorando na falta do pão
É revolta de um cidadão, que vive humilhado mais mantem os pés no chão
Ô não ôô não ô não!
Essa droga de país que só tem corrupção
Acordar de manha ver seu filho chorando na falta do pão
É revolta de um cidadão, que vive humilhado mais mantem os pés no chão
Ô não ôô não ô não!
Essa droga de país que só tem corrupção
É que eu mantenho minha cabeça em pé
Fale o que quiser, pode vim o que já é
Eu mantenho minha cabeçaem pé
Fale o que quiser fale o que quiser...”
Fale
Eu mantenho minha cabeça
Fale
E ainda se pode destacar o trecho abaixo:
SOU PERIFERIA (Psirico)
“...Sou da palafita, da favela
Do alto do morro
Sou a voz do brasileiro
Pedindo socorro encarando a vida
Eu bato na panela
Faço carnaval
Apesar dos tropeços
Tô em alto astral
Sou um cara guerreiro
De becos e guetos
Não desisto nunca
Sou brasileiro
Do alto do morro
Sou a voz do brasileiro
Pedindo socorro encarando a vida
Eu bato na panela
Faço carnaval
Apesar dos tropeços
Tô em alto astral
Sou um cara guerreiro
De becos e guetos
Não desisto nunca
Sou brasileiro
Não tem stress e nem fantasia
Sou periferia
Sou periferia
Sou periferia”
Sou periferia
Sou periferia
Sou periferia”
Sendo assim, essas ideias e consepções de quem é, qual ideologia, qual local de vivência e pertencimento são concebidos por inúmeros cidadãos de Salvador única e exclusivamente com a formação identitária proporcionada pelas músicas de pagode. Essa visão de mundo e ideário de pertencimento são adquiridos através do som marginalizado de uma cidade que abraça tudo e (quase) todos e exclui sem dó inúmeros de seus cidadãos, parcela grande e significativa de moradores dessa terra que um dia o poeta barroco Gregório de Mattos Guerra definiu como “mãe dos estrangeiros e madrasta dos nativos”. Ainda hoje é Salvador essa cidade. Ainda hoje as pessoas dessa terra buscam elementos que formem suas identidades. Que aponte-lhes caminhos a serem seguidos. Quando fracassam as teorias, as fórmulas mágicas e as ideias copiadas de tantos autores e lugares. Eis que o Pagode marginalizado, reprovado antes mesmo de chegar à academia apresenta as soluções de formação de identidade ou pelo menos apontam caminhos mais seguros, coesos e coerente ante à realidade dessas pessoas. Falando sua língua, sendo entendido por todos e deixando-se entender. Essa vem a ser a filosofia mais franca do pagode. Chega onde não chegam as teorias filosoficas, marxistas, freudianas, freyrianas. Chegam a corações e mentes que buscam se ver, se entender e se descobrir.
CONCLUSÃO:
Para mim o povo sempre sabe o que quer por mais controversa que seja a via. Se não sabe em cem porcento o quer, sabe pelo menos em cem porcento o que não quer. Não se coloca mais de dez mil pessoas numa gravação de CD/DVD ao vivo em torno de um ritmo à toa. No universo do pagode não há espaço para um ser que brilha. São inúmeras bandas e sem grandes e/ou maiores rivalidades. No show bussines do pagode, as relações são mais francas e mais harmoniosas. O Leva Nóiz em seu hit do carnaval 2011 diz “Somos todos Super-Amigos, é o Leva Nóiz, o Parangolê, o Psirico, o Fantasmão, o Edcity somos todos Super-Amigos” (trecho da música Liga da Justiça).
Ao mesmo tempo que brilha Edcity está brilhando Márcio Victor. Em paralelo a eles os shows da Black Style e das demais bandas: O Troco, Fantasmão, Swing do P, Saiddy Bamba etc estão lotados. Há público para todas as bandas e vôos solos de seus vocalistas e quanto mais bandas e vôos solos houverem. O público pagodeiro se divide para multiplicar. Isso senão é saber o que quer, pelo menos é saber o que não quer e ter isso bem definido em suas mentes.
Portanto, não cabe no mundo dos pagodeiros – fãs e artistas – espaço para ausência de identidade. A identida está formada. As ideias estão expostas. O debate está lançado, as cartas postas na mesa. O pagode contribui para essa formação identitária. O Pagode Baiano serve como Elemento Formador de Identidade na Cidade do Salvador.
REFERÊNCIAS:
- Site de letras de músicas www.letras.mus.br e www.vagalume.com.br;
- Vídeos apresentados em sala de aula sobre “A formação do povo brasileiro” – Gilberto Freyre;
- BERND, Ziláh – Literatura e Identidade Nacional – UFRGS 1992 autora Ziláh Bernd.
* Por Law Araújo - Graduando em Letras Vernáculas da Universidade Católica do Salvador - UCSal. Ensaio apresentado à disciplina Cultura Brasileira.