Há algum tempo, alguns historiadores enfrentam o desafio de escrever sobre o momento em que vivem. Nos anos 1940, Marc Bloch apontou o caráter subjetivo e político da distinção entre passado e presente e criticou a crença em um limite cronológico a partir do qual “a História” repousaria inerte como objeto de estudo. Ainda assim, é inegável que, na “história do tempo presente”, a imersão do analista no fenômeno estudado aguça as dificuldades intrínsecas à reconstituição dos processos históricos com algum grau de objetividade. A história da esquerda vivencia essas tensões de forma aguda. Como destacou Eric Hobsbawm, os escritos militantes que estão na sua origem possuem tanto a força do engajamento quanto a fragilidade da instrumentalização da história para disputas internas, gerando muitas vezes narrativas paroquiais e hagiográficas. Ingressando no ambiente acadêmico a partir dos anos 1960, o campo ganhou em densidade analítica, mas não são raros os casos em que perdeu o referencial político que lhe dava sentido.
História do PT, de Lincoln Secco, é sério e corajoso no enfrentamento desses desafios, mas obtém maior sucesso em alguns aspectos que em outros. A apresentação do trabalho como “primeiro livro de história sobre o PT” é questionável, mas o autor está correto em criticar a pouca atenção dada pelos historiadores até o momento a um fenômeno de tamanha magnitude e relevância. Um dos méritos da obra é trazer de forma sintética e sistemática um amplo leque de informações sobre seu objeto, organizadas em quatro capítulos baseados na periodização estabelecida pelo autor: Formação (1978-1983); Oposição Social (1984-1989); Oposição Parlamentar (1990-2002); Partido de Governo (2003-2010). Secco realiza também um esforço louvável e infelizmente ainda bastante raro de pensar a formação e desenvolvimento do PT levando em consideração a diversidade regional do país, utilizando para isso fontes primárias (depoimentos de militantes intermediários etc.), assim como dissertações e teses não publicadas.
Entretanto, ao abordar o vasto conjunto de aspectos presentes em 33 anos de história do PT em um livro curto (as cerca de 250 páginas de texto se reduziriam à metade em uma edição tamanho-padrão), a obra enreda-se em uma série de impasses. O mais evidente deles diz respeito à relação entre seu teor e o público ao qual se dirige. Secco justifica a ausência de um debate historiográfico apresentando o livro como um trabalho não acadêmico, uma obra “ensaística e voltada aos que ‘trabalham’ com o PT: jornalistas, cientistas políticos, pesquisadores estrangeiros e, decerto, os militantes da esquerda” (p. 22, ênfase no original). A seguir, aponta como destinatários “os estudantes e os jovens em geral, que são os herdeiros dessa história e desejam superá-la” (p. 23). O livro, na verdade, oscila entre a pretensão de proporcionar uma síntese abrangente de informações sobre todos os aspectos da história de um partido e a de oferecer um ensaio interpretativo. Em qualquer caso, as justificativas para a ausência de um debate sobre as análises contidas na vasta bibliografia produzida sobre o PT são bastante questionáveis, até porque é possível argumentar que uma apresentação sintética e didática dessas interpretações poderia contribuir para tornar o fenômeno histórico PT mais inteligível às novas e futuras gerações.
O livro ganha força no final, quando o caráter ensaístico fica mais evidente. No último capítulo, o autor faz um balanço bastante consistente e ponderado sobre a situação atual do partido e o significado histórico das conquistas do governo Lula. Já na conclusão, situa a formação e o desenvolvimento do PT num contexto internacional, estabelecendo um diálogo com algumas das maiores referências intelectuais da esquerda mundial, que fazem balanços inequivocamente positivos sobre a trajetória do partido. Mas o trabalho carece de diálogo com uma produção historiográfica mais atualizada e abrangente sobre a trajetória da esquerda internacional e nacional. Desse modo, não chega a oferecer uma interpretação mais explícita e desenvolvida sobre o lugar do PT na história da esquerda brasileira e mundial, algo que os insights do autor em diversos trechos demonstram que ele teria plenas condições de elaborar.
A pretensão “totalizadora” do livro – ainda mais evidente na forma como o título é apresentado na capa, sem referência ao período estudado – leva também a um tratamento bastante desigual dos diferentes aspectos abordados. Mistura informações precisas e imprecisas; relevantes e irrelevantes; assim como opiniões bem fundamentadas e especulações discutíveis. Isso faz com que boa parte do texto acrescente pouco aos familiarizados com o assunto, ao mesmo tempo em que permanece hermético demais para os não familiarizados. Informações esparsas sobre uma ampla gama de assuntos altamente controversos são reduzidas a referências descontextualizadas, ou até mesmo a notas de rodapé. Ao buscar incorporar na narrativa a menção a todas as tendências internas do PT, independentemente da sua maior ou menor expressão e duração, por exemplo, acaba servindo ao leitor leigo uma indigesta “sopa de letrinhas”.
Cabe ressaltar ainda que, embora Secco se esforce para não ser dominado pelo mito do “PT das origens” – a versão petista do “mito da Idade de Ouro”–, ele ainda assombra sua narrativa. O autor aponta corretamente para fatores estruturais que solaparam as bases da peculiar relação entre sociabilidade e participação política expressa na primeira década de existência do partido. Mas o livro é pontilhado de casos evocados para ilustrar a nostalgia que se abate atualmente sobre os protagonistas do antigo “partido militante”, alguns deles de pertinência bem discutível, como o da funcionária que apesar de achar que estava sendo contratada pela Yakult fez carreira bem-sucedida na CUT. Secco reconhece que a capacidade de mobilizar 300 mil filiados no Processo de Eleição Direta de 2005 marcou uma inflexão decisiva na conjuntura de crise política que se encaminhava para o impeachment e abriu caminho não apenas para a reeleição de Lula como também para um segundo governo com políticas muito mais compatíveis com o ideário do partido. Mas desdenha tanto o retorno da ênfase no socialismo ocorrida no interior do PT a partir daí (que seria apenas sinal da persistência de uma “identidade e simbologia” gestada no passado) quanto a atual força eleitoral do partido (que se resumiria ao “brilho de uma realidade que já desapareceu”, p. 250).
Como memória coletiva elaborada e compartilhada por veteranos petistas – assim como pelos dissidentes do partido –. esse ponto de vista tem uma força esmagadora. Como análise histórica, merece uma problematização bem maior que a oferecida pelo autor. O fim da “comunidade horizontal” da militância petista e a burocratização da estrutura partidária podem ser entendidos como resultados inexoráveis a partir do momento em que o PT alcançou o objetivo histórico de se tornar um partido de massas. A regulamentação do funcionamento do partido continua a se destacar por quaisquer parâmetros históricos (nacionais ou internacionais) pelo seu elevado teor democrático. E, embora seja fácil apontar as distorções atuais à prática dessa democracia interna (poder dos mandatos parlamentares e abuso do poder econômico, por exemplo), é importante não esquecer que práticas antidemocráticas, sutilmente disfarçadas sob concepções basistas e assembleístas, também estavam presentes em todas as vertentes formadoras do partido. A democratização do país criou inúmeras frentes de atuação política, que canalizam muitas das energias de militantes veteranos e novos, e, embora nem todos sejam petistas, o PT continua a ser a referência de aglutinação para movimentos sociais e forças progressistas em embates decisivos sobre os rumos da Nação.
No âmbito programático, apesar de a imprecisão do entendimento petista sobre o socialismo ser uma debilidade amplamente conhecida, seria justo reconhecer que as opiniões sobre o assunto no seio da esquerda já estavam suficientemente abaladas no momento em que o partido foi criado, e desabaram após 1989. Por mais de setenta anos, a existência do sistema soviético fora um fator determinante para os posicionamentos da esquerda mundial: havia os que o defendiam tal como era, os que achavam que bastava democratizá-lo e os que, diante dele, optaram por reformar o capitalismo. O PT conseguiu congregar gente das três opiniões sob um entendimento genérico do socialismo como luta contra todas as formas de desigualdade social e defesa do protagonismo dos subalternos. Foi isso que fez do partido o grande contraponto ao colapso global da esquerda, em todas as suas variantes, ao longo dos anos 1990.
A opção por um pacto político altamente pragmático, e não por um pacto ideológico, tornou possível ao PT capitanear a reversão do processo de fragmentação vivenciado pela esquerda brasileira por décadas, bem como a conquista de bases populares inéditas para um dos mais bem-sucedidos exemplos de luta de resistência contra a hegemonia neoliberal. Mas essa luta não se limitou ao aspecto reativo. Embora Secco esteja correto em apontar o impacto desorientador do Plano Real sobre o PT na campanha de 1994 (pp. 168-171), ignora que simultaneamente o partido elaborava, pela primeira vez, um programa de governo com a consistência necessária para guiar uma reorientação da economia e da política brasileiras no rumo do neodesenvolvimentismo democrático. Podemos identificar aí o lançamento das bases para a construção das políticas públicas e da ampla aliança político-social que tornaram possível o sucesso do PT no exercício da Presidência da República. Assim, resgatou-se a possibilidade histórica de reconstrução de um projeto socialista como originalmente proposto por Marx: a superação do capitalismo a partir das contradições inerentes ao seu desenvolvimento. Afinal, se a história se encerrasse com a transformação de uma agremiação rebelde em “partido da ordem”, como explicar a fúria de todos os setores do establishment que buscam em vão “eliminar essa raça” nos últimos anos?
Portanto, é temerário ao historiador insinuar um epitáfio, tantas vezes já profetizado e tantas vezes desmentido. Daí por que História do PT representa uma bem-vinda contribuição aos estudos sobre o partido, mas Uma interpretação sobre os trinta primeiros anos do PT seria um objetivo mais modesto e, quiçá, mais certeiro.
Alexandre Fortes é professor do Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Teoria & Debate)
História do PT, de Lincoln Secco, é sério e corajoso no enfrentamento desses desafios, mas obtém maior sucesso em alguns aspectos que em outros. A apresentação do trabalho como “primeiro livro de história sobre o PT” é questionável, mas o autor está correto em criticar a pouca atenção dada pelos historiadores até o momento a um fenômeno de tamanha magnitude e relevância. Um dos méritos da obra é trazer de forma sintética e sistemática um amplo leque de informações sobre seu objeto, organizadas em quatro capítulos baseados na periodização estabelecida pelo autor: Formação (1978-1983); Oposição Social (1984-1989); Oposição Parlamentar (1990-2002); Partido de Governo (2003-2010). Secco realiza também um esforço louvável e infelizmente ainda bastante raro de pensar a formação e desenvolvimento do PT levando em consideração a diversidade regional do país, utilizando para isso fontes primárias (depoimentos de militantes intermediários etc.), assim como dissertações e teses não publicadas.
Entretanto, ao abordar o vasto conjunto de aspectos presentes em 33 anos de história do PT em um livro curto (as cerca de 250 páginas de texto se reduziriam à metade em uma edição tamanho-padrão), a obra enreda-se em uma série de impasses. O mais evidente deles diz respeito à relação entre seu teor e o público ao qual se dirige. Secco justifica a ausência de um debate historiográfico apresentando o livro como um trabalho não acadêmico, uma obra “ensaística e voltada aos que ‘trabalham’ com o PT: jornalistas, cientistas políticos, pesquisadores estrangeiros e, decerto, os militantes da esquerda” (p. 22, ênfase no original). A seguir, aponta como destinatários “os estudantes e os jovens em geral, que são os herdeiros dessa história e desejam superá-la” (p. 23). O livro, na verdade, oscila entre a pretensão de proporcionar uma síntese abrangente de informações sobre todos os aspectos da história de um partido e a de oferecer um ensaio interpretativo. Em qualquer caso, as justificativas para a ausência de um debate sobre as análises contidas na vasta bibliografia produzida sobre o PT são bastante questionáveis, até porque é possível argumentar que uma apresentação sintética e didática dessas interpretações poderia contribuir para tornar o fenômeno histórico PT mais inteligível às novas e futuras gerações.
O livro ganha força no final, quando o caráter ensaístico fica mais evidente. No último capítulo, o autor faz um balanço bastante consistente e ponderado sobre a situação atual do partido e o significado histórico das conquistas do governo Lula. Já na conclusão, situa a formação e o desenvolvimento do PT num contexto internacional, estabelecendo um diálogo com algumas das maiores referências intelectuais da esquerda mundial, que fazem balanços inequivocamente positivos sobre a trajetória do partido. Mas o trabalho carece de diálogo com uma produção historiográfica mais atualizada e abrangente sobre a trajetória da esquerda internacional e nacional. Desse modo, não chega a oferecer uma interpretação mais explícita e desenvolvida sobre o lugar do PT na história da esquerda brasileira e mundial, algo que os insights do autor em diversos trechos demonstram que ele teria plenas condições de elaborar.
A pretensão “totalizadora” do livro – ainda mais evidente na forma como o título é apresentado na capa, sem referência ao período estudado – leva também a um tratamento bastante desigual dos diferentes aspectos abordados. Mistura informações precisas e imprecisas; relevantes e irrelevantes; assim como opiniões bem fundamentadas e especulações discutíveis. Isso faz com que boa parte do texto acrescente pouco aos familiarizados com o assunto, ao mesmo tempo em que permanece hermético demais para os não familiarizados. Informações esparsas sobre uma ampla gama de assuntos altamente controversos são reduzidas a referências descontextualizadas, ou até mesmo a notas de rodapé. Ao buscar incorporar na narrativa a menção a todas as tendências internas do PT, independentemente da sua maior ou menor expressão e duração, por exemplo, acaba servindo ao leitor leigo uma indigesta “sopa de letrinhas”.
Cabe ressaltar ainda que, embora Secco se esforce para não ser dominado pelo mito do “PT das origens” – a versão petista do “mito da Idade de Ouro”–, ele ainda assombra sua narrativa. O autor aponta corretamente para fatores estruturais que solaparam as bases da peculiar relação entre sociabilidade e participação política expressa na primeira década de existência do partido. Mas o livro é pontilhado de casos evocados para ilustrar a nostalgia que se abate atualmente sobre os protagonistas do antigo “partido militante”, alguns deles de pertinência bem discutível, como o da funcionária que apesar de achar que estava sendo contratada pela Yakult fez carreira bem-sucedida na CUT. Secco reconhece que a capacidade de mobilizar 300 mil filiados no Processo de Eleição Direta de 2005 marcou uma inflexão decisiva na conjuntura de crise política que se encaminhava para o impeachment e abriu caminho não apenas para a reeleição de Lula como também para um segundo governo com políticas muito mais compatíveis com o ideário do partido. Mas desdenha tanto o retorno da ênfase no socialismo ocorrida no interior do PT a partir daí (que seria apenas sinal da persistência de uma “identidade e simbologia” gestada no passado) quanto a atual força eleitoral do partido (que se resumiria ao “brilho de uma realidade que já desapareceu”, p. 250).
Como memória coletiva elaborada e compartilhada por veteranos petistas – assim como pelos dissidentes do partido –. esse ponto de vista tem uma força esmagadora. Como análise histórica, merece uma problematização bem maior que a oferecida pelo autor. O fim da “comunidade horizontal” da militância petista e a burocratização da estrutura partidária podem ser entendidos como resultados inexoráveis a partir do momento em que o PT alcançou o objetivo histórico de se tornar um partido de massas. A regulamentação do funcionamento do partido continua a se destacar por quaisquer parâmetros históricos (nacionais ou internacionais) pelo seu elevado teor democrático. E, embora seja fácil apontar as distorções atuais à prática dessa democracia interna (poder dos mandatos parlamentares e abuso do poder econômico, por exemplo), é importante não esquecer que práticas antidemocráticas, sutilmente disfarçadas sob concepções basistas e assembleístas, também estavam presentes em todas as vertentes formadoras do partido. A democratização do país criou inúmeras frentes de atuação política, que canalizam muitas das energias de militantes veteranos e novos, e, embora nem todos sejam petistas, o PT continua a ser a referência de aglutinação para movimentos sociais e forças progressistas em embates decisivos sobre os rumos da Nação.
No âmbito programático, apesar de a imprecisão do entendimento petista sobre o socialismo ser uma debilidade amplamente conhecida, seria justo reconhecer que as opiniões sobre o assunto no seio da esquerda já estavam suficientemente abaladas no momento em que o partido foi criado, e desabaram após 1989. Por mais de setenta anos, a existência do sistema soviético fora um fator determinante para os posicionamentos da esquerda mundial: havia os que o defendiam tal como era, os que achavam que bastava democratizá-lo e os que, diante dele, optaram por reformar o capitalismo. O PT conseguiu congregar gente das três opiniões sob um entendimento genérico do socialismo como luta contra todas as formas de desigualdade social e defesa do protagonismo dos subalternos. Foi isso que fez do partido o grande contraponto ao colapso global da esquerda, em todas as suas variantes, ao longo dos anos 1990.
A opção por um pacto político altamente pragmático, e não por um pacto ideológico, tornou possível ao PT capitanear a reversão do processo de fragmentação vivenciado pela esquerda brasileira por décadas, bem como a conquista de bases populares inéditas para um dos mais bem-sucedidos exemplos de luta de resistência contra a hegemonia neoliberal. Mas essa luta não se limitou ao aspecto reativo. Embora Secco esteja correto em apontar o impacto desorientador do Plano Real sobre o PT na campanha de 1994 (pp. 168-171), ignora que simultaneamente o partido elaborava, pela primeira vez, um programa de governo com a consistência necessária para guiar uma reorientação da economia e da política brasileiras no rumo do neodesenvolvimentismo democrático. Podemos identificar aí o lançamento das bases para a construção das políticas públicas e da ampla aliança político-social que tornaram possível o sucesso do PT no exercício da Presidência da República. Assim, resgatou-se a possibilidade histórica de reconstrução de um projeto socialista como originalmente proposto por Marx: a superação do capitalismo a partir das contradições inerentes ao seu desenvolvimento. Afinal, se a história se encerrasse com a transformação de uma agremiação rebelde em “partido da ordem”, como explicar a fúria de todos os setores do establishment que buscam em vão “eliminar essa raça” nos últimos anos?
Portanto, é temerário ao historiador insinuar um epitáfio, tantas vezes já profetizado e tantas vezes desmentido. Daí por que História do PT representa uma bem-vinda contribuição aos estudos sobre o partido, mas Uma interpretação sobre os trinta primeiros anos do PT seria um objetivo mais modesto e, quiçá, mais certeiro.
Alexandre Fortes é professor do Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Teoria & Debate)
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