quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O direito à memória e à verdade

Assim que o Senado votar a lei que cria a Comissão Nacional da Verdade, a história de um triste período do Brasil começará a ser escrita. Desde o início do processo de redemocratização há a expectativa de mostrar ao país o que aconteceu. O debate sobre o período ditatorial é acalorado, já que envolve discutir mortes, desaparecimentos e toda sorte de violência e justiça. Nilmario Miranda, presidente da Fundação Perseu Abramo, ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos (2003-2005), atua desde a ditadura pela criação de organismos que investiguem os fatos daquele período e façam justiça à memória de tantos que lutaram contra o autoritarismo. Autor de Dos Filhos deste Solo, em parceria com Carlos Tibúrcio, Nilmario fala sobre a Comissão da Verdade, o processo de votação e rebate críticas sobre sua criação tal como foi aprovada na Câmara dos Deputados
Nilmario Miranda, presidente da Fundação Perseu Abramo, durante entrevista
Nilmario Miranda, presidente da Fundação Perseu Abramo, fala sobre a Comissão Nacional da Verdade
Foto: Arquivo FPA

Qual o objetivo central da Comissão Nacional da Verdade?
É uma espécie de política para garantir o direito à memória e à verdade como parte da transição de uma sociedade autoritária para a democrática. Na democracia há uma série de deveres do Estado com a sociedade: reparação financeira, moral e histórica das pessoas que tiveram direitos violados, além de instituições permanentes ou temporárias para cuidar do direito à memória e à verdade, para esclarecer os fatos que venham a se tornar parte da história oficial do país. As gerações presentes e futuras devem conhecer o que ocorreu no país no período ditatorial, inclusive para não revivê-lo. Dizem que a Constituição mais democrática do mundo era a da Alemanha, mas ninguém a defendeu, pois os cidadãos não eram democratas, tanto que embarcaram na aventura do nazismo.

Antes, um passo importante foi o reconhecimento da responsabilidade do Estado.

No Brasil reconhecemos a responsabilidade do Estado, mas não houve punição criminal dos mandantes e executores de torturas, sequestros e mortes. A história não acaba com a Comissão da Verdade, ela é mais um degrau na construção da democracia. Tivemos em 1979 a anistia restrita, excludente, parcial, mas fundamental para o país apressar o fim da ditadura. Ela trouxe muitas pessoas do exílio, foram canceladas as punições e as suspensões dos direitos políticos de dezenas de milhares de pessoas. Em 1995, tivemos a lei que reconheceu a responsabilidade objetiva do Estado e o tema mortos e desaparecidos políticos, que era tabu, passou a ser discutido abertamente na esfera pública.

Em 2001, houve a criação da Comissão da Anistia. Notem quantos anos entre uma ocorrência e outra. Instituiu-se a comissão para avaliar e reparar todos os casos de pessoas que, na ditadura militar, sofreram todo tipo de agravo, até mesmo perda de vínculo laboral por perseguição política, incluindo 5 mil militares que foram afastados das Forças Armadas e milhares de demitidas do setor público, em todos os níveis, e de empresas privadas. Todos que sofreram prejuízos nos estudos, na ascensão profissional, com a censura tiveram cobertura. E agora estamos em busca da verdade.

E onde está a verdade?

A verdade não está nos milhões de documentos já abertos porque eles retratam o que o Estado elaborava sobre as pessoas que vigiou, puniu, perseguiu, prendeu, demitiu, exonerou, torturou, matou. Para conhecer a verdade é preciso ter acesso a muitos outros documentos e ouvir a voz das vítimas, que está na Comissão da Anistia e na Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, em arquivos particulares, ou em memoriais, como o de Minas, quando for concluído, onde se concentrarão muitas informações. À Comissão da Verdade cabe dizer o que aconteceu na ditadura, esse é o sentido dela. É um passo gigantesco na conservação democrática.

Mas o que se pretendia com essa Comissão era um pouco mais.

Se falava em Comissão de Verdade e Justiça. Seria um passo para a responsabilização criminal, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) referiu-se à ação dos torturadores como crimes conexos, deixando-os impunes. A deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP) tem um projeto que prevê a revisão da Lei de Anistia e abre a possibilidade de julgamentos de agentes do Estado responsáveis por tortura, desaparecimento e morte de militantes de esquerda que se opuseram à ditadura. Mas não há ainda um clamor da sociedade que leve o Congresso a aprovar isso. Tanto que sou um dos críticos da conduta da OAB de ter antecipado a consulta ao STF sobre a expressão “crimes conexos” anistiar torturadores. Foi prematuro. A maioria da sociedade não vê importância nesse assunto, e assim o STF ficou desembaraçado para confirmar a impunidade. Então, a Comissão da Verdade perdeu a Justiça. Nem por isso ela perde sua extraordinária importância. (Teoria & Debate)

Nenhum comentário:

Postar um comentário