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A pressão é grande e o time da casa se defende. A expressão é frequentemente usada durante partidas de futebol em que a equipe visitante, sem nada a perder, resolve pressionar para ganhar de qualquer jeito. Mas, dessa vez, trata-se de algo mais importante que final de campeonato. O time da casa é o Brasil, que precisa defender a todo custo os interesses de sua população contra uma pesada artilharia da Federação Internacional de Futebol (Fifa). A entidade privada que comanda o esporte e organiza a Copa do Mundo pressiona as autoridades para que a legislação nacional seja atropelada de modo a garantir lucro máximo em 2014, ano em que o torneio será realizado no Brasil.
Desde meados de setembro um projeto de lei que trata das especificidades da Copa está sendo discutido no Congresso Nacional. De todos os 46 artigos propostos na Lei Geral da Copa, nenhum faz menção às responsabilidades da FIFA, que terá direito a exclusividade sobre bens e serviços relacionados ao torneio.
Entre as mudanças mais polêmicas está a possível suspensão da meia-entrada para estudantes e idosos (veja nos cartões vermelhos ao longo desta reportagem os retrocessos que podem acontecer). A presidente Dilma tem afirmado que o desconto de 50% garantido pelo Estatuto do Idoso, uma legislação federal, será mantido. Já a meia-entrada para estudantes, que tem diferentes regras de aplicação em Estados e municípios, deve ser negociada com os governos locais. Teoricamente, os estudantes já poderiam ter esse direito garantido por regras de âmbito nacional com a aprovação do Estatuto da Juventude. Mas a votação do projeto foi estrategicamente adiada para não criar mal-estar com a Fifa.
“A Fifa não pode chegar com o pé na porta no ordenamento jurídico brasileiro. A Lei Geral da Copa, do jeito que está, não pretende garantir a realização do evento, mas o beneficiamento máximo da Fifa”, afirma Guilherme Varella, advogado do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). O Instituto enviou uma carta para a presidente Dilma, para os seus ministros e para o Congresso, chamando atenção para as diversas inconstitucionalidades do texto em debate. “Existem conflitos com leis trabalhistas, com o Código de Defesa do Consumidor, com o Estatuto do Torcedor. Restrições ao livre comércio e ao direito de ir e vir, entre outras coisas”, elenca.
O governo brasileiro tem dado sinais de que pretende resistir às investidas da entidade e, por isso, tem convivido com constantes ameaças de que o mundial pode ser transferido para outro País, se as mudanças não forem efetivadas.
“Eles fazem exigências, mas o Brasil é um País livre e independente e faz o que quiser. O governo pode dizer não. Para onde eles levariam a Copa? A Fifa está apontando uma arma para vocês, mas ela não está carregada”, acredita Andrew Jennings, jornalista investigativo inglês. Jennings não pode participar de nenhuma entrevista coletiva organizada pela entidade máxima do futebol por já ter publicado diversas matérias com denúncias de corrupção envolvendo a entidade. Para ele, a Fifa “usa a paixão pelo futebol para extorquir dinheiro” dos países em que sedia seus eventos. “Eles impõem exigências ultrajantes a um país. Redução fiscal para si própria e seus patrocinadores, como na África do Sul. O contribuinte paga e a Fifa diz ‘tchauzinho’ no aeroporto e nunca mais se vê o dinheiro”, afirma, baseado em sua longa experiência investigando a entidade.
“Se for aprovado do jeito que está essa lei fere a soberania nacional. A Fifa conhecia a legislação brasileira. E essa lei foi elaborada para atender os interesses dessa entidade privada e estrangeira”, afirma o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro, Wadih Damous.
Já há várias sugestões de parlamentares para aprimorar o projeto de lei. Mas, diversos membros da comissão envolvida neste processo são ligados a Ricardo Teixeira, o presidente da Confederação Brasileira de Futebol e aliado da Fifa. “Teixeira não está trabalhando para os brasileiros, está trabalhando para a Fifa”, afirma Jennigs.
“A Fifa é uma entidade autoritária. Tem regras que ferem os ordenamentos jurídicos nacionais. É pouco transparente e está sempre envolvida em escândalos. Eu tenho minhas dúvidas se nos Estados Unidos (sede da copa de 1994) ela fez essas mesmas exigências. Queremos receber o evento. Mas tudo tem limite e o nosso tem que ser a nossa soberania”, afirma Damous.
Além da discussão sobre a Lei Geral, diversas outras exigências da Fifa para a realização do torneio em 2014 têm mudado o cotidiano brasileiro. Em fevereiro o coordenador da comissão do governo para a segurança na Copa e na Olimpíada, Alexandre Aragon, declarou que existia no Ministério da Justiça um grupo escalado para trabalhar pela adequação da legislação para autorizar o trabalho de policiais de folga como seguranças privados durante a Copa do Mundo de 2014, uma espécie de oficialização dos “bicos”. Questionado sobre o assunto, a assessoria do Ministério disse que um grupo de trabalho foi montado em agosto, mas que ainda não há definições.
A Copa também tem servido como pretexto para a remoção de milhares de famílias de áreas onde serão construídos estádios ou vias de acesso em todo País. “A Copa é um argumento extremamente forte para que essa velha política brasileira seja realizada novamente. A competição justifica a violência e o desrespeito a uma série de tratados internacionais ligados ao direito à moradia”, aponta Marcelo Braga Edmundo, do Comitê Popular da Copa do Rio de Janeiro. Segundo ele, 20 mil famílias devem ser desapropriadas na capital fluminense. (Folha Universal)
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