Eles foram consumidos pela droga
No Brasil, três em cada dez usuários de crack morrem. Droga avança em todo o País rapidamente. E, em São Paulo, a droga de luxo crystal ganha terrenoredacao@folhauniversal.com.br
Em média, três de cada dez usuários de crack morrem no Brasil. Existem de 600 mil a 1 milhão de dependentes em todo o território nacional. Destes, pelo menos 300 mil devem falecer nos próximos 12 anos. Os dados são estimativas feitas por Ronaldo Laranjeira, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autor de uma das poucas pesquisas sobre o crack no País. Não há estimativas oficiais.
Trata-se de um retrato do cenário de devastação provocado pelo avanço de uma droga destruidora. Ao todo 131 dependentes foram acompanhados durante 12 anos. No período, 30% dos usuários morreram – mais da metade de forma violenta – ; 30% continuaram dependentes e 10% foram presos. Segundo o médico, apenas uma minoria de 30% parou de usar a droga. “Essa taxa de mortalidade é altíssima, dez vezes maior do que o aceitável em outros países. O crack, assim como o álcool, precisa de vários níveis assistenciais. É uma gama de ações que não existem no Brasil. Falta rede pública adequada”, critica Laranjeira, que também é coordenador da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad).
O crack avança ao mesmo tempo em que o crystal, ou metadona, um narcótico bastante comum no exterior, ganha espaço principalmente entre jovens de classe média alta nas metrópoles. Em São Paulo, o Departamento Estadual de Investigações Sobre Narcóticos (Denarc) apreendeu desde março sete grandes carregamentos, totalizando cerca de 10 mil doses de crystal. Trata-se de um veneno tão destrutivo quanto o crack.
Se antes o crack era uma droga ligada à imagem de moradores de rua ou às classes mais baixas de grandes centros urbanos, hoje ele atinge todas as camadas da população e até mesmo áreas rurais do interior do País. “A expansão de oferta do crack é impressionante. Eu não conheço uma cidade pequena que não tenha um ponto de venda de droga”, pontua Carlos Salgado, psiquiatra e presidente do conselho consultivo da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas.
E esse novo alcance do crack foi responsável pelo aumento do número de usuários, principalmente entre os mais jovens, como explica Luciano Oliveira, psicólogo da Clínica Maia Prime, de São Paulo, que trata de dependentes químicos. “O crack é uma droga barata com efeito imediato, que causa fortes sensações e que tem acesso é cada vez mais fácil”, afirma. Por ser produzido de maneira clandestina, ele frequentemente contém substâncias como cal, cimento, querosene, ácido sulfúrico, acetona, amônia e soda cáustica.
Depois de pegar o carro da empresa onde trabalhava, Armando*, de 32 anos, passou 3 dias rodando a cidade atrás de crack, sem entrar em contato com ninguém. “Fiquei rodando por favelas. Só parei porque acabou o dinheiro”, conta. Esse episódio foi a gota d’água para a família decidir interná-lo contra a própria vontade, depois de 8 anos de dependência. “Cheguei totalmente alucinado, sem noção nenhuma. Hoje, depois de mais ou menos 40 dias limpo, estou saudável, respiro melhor, penso melhor”, comemora.
Debilidade física e mental, problemas psíquicos e de caráter são algumas das consequências do uso prolongado do crack. Além disso, os dependentes têm que lidar com a desnutrição, desidratação, crises hipertensivas e o risco de contrair doenças venéreas em decorrência de comportamento sexual de risco. “A pessoa quando fuma crack fica ativa, come menos e se hidrata menos. Por ser uma droga de ação curta, de 5 a 10 minutos, ela acaba abandonando outras atividades para viver apenas a droga”, explica Salgado. “Normalmente os dependentes apresentam diagnósticos de transtornos de humor e depressão”, completa.
Marcelo*, de 56 anos, perdeu 20 quilos durante os 2 anos e meio em que usou a droga. Desde julho internado em tratamento, ele conta que decidiu procurar ajuda quando percebeu que o vício estava prejudicando a relação com a família e os amigos. “Estava chegando ao fundo do poço e acumulando dívidas”, lembra. Usuário de cocaína antes de chegar ao crack, Marcelo reconhece a responsabilidade pelas escolhas erradas que fez. “Me sinto envergonhado, decepcionado comigo mesmo. Prejudiquei minha saúde e fiquei longe de quem amo”.
O tempo de internação para a recuperação varia caso a caso, mas a média para a desintoxicação inicial é de 4 semanas. “Existem usuários mais graves e menos graves, embora a maioria tenda a ser mais devido à grande capacidade de desorganização do crack. Quanto mais cedo a pessoa começou a usar, mais longa é a internação, que pode ultrapassar 6 meses”, diz Salgado.
De acordo com a Frente Parlamentar de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas da Assembleia Legislativa de São Paulo, a recaída é superior a 50%. “A Organização Mundial da Saúde considera a recaída parte da doença. Por isso, o tratamento deve incluir não apenas o usuário, mas também familiares”, diz Oliveira.
“O tratamento contra o crack é penoso. Nenhuma família passa ilesa ao crack. Nem na recuperação nem na manutenção da doença”, completa Laranjeira. De acordo com uma pesquisa realizada em 2010 pela Confederação Nacional de Municípios (CNM), o crack está presente em 71% das cidades. O levantamento mostrou também que mais de 91% delas não possuem programa municipal de combate ao crack e nenhum tipo de auxílio das esferas federal e estadual. No ano passado, o governo lançou o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, com investimento de R$ 410 milhões.
Entretanto, Laranjeira afirma que até agora o projeto não teve nenhum impacto real no problema do crack. “Isso foi um engodo. Eu desafio você a encontrar uma cidade ou estado onde esse investimento previsto pelo plano tenha tido um impacto positivo. É um dinheiro que ninguém sabe onde foi aplicado”, destaca.
* Os nomes dos personagens foram trocados
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O caminho das pedras
O crack é produzido em laboratórios no Brasil a partir da cocaína plantada em outros países
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